Lutar pelo território é garantir direitos das crianças e das futuras gerações

Crianças Dâw brincam no Rio Negro no porto da comunidade. Foto – Ray Baniwa/Rede Wayuri

Lembranças de uma infância sofrida e difícil serviram de motivação para a professora Auxiliadora Fernandes, do povo Dâw, entrar no movimento indígena e lutar pelo seu povo e, especialmente, pelas crianças da sua etnia. “Minha infância foi marcada por grandes dificuldades, por isso nunca vou deixar de lutar por essas crianças, não quero que elas passem o que eu passei quando era criança”, afirma, com lágrimas. 

Auxiliadora nasceu no ano de 1974, numa época em que povo Dâw chegou a ter uma população de apenas 50 pessoas, sobreviventes das sucessivas violências ocasionadas pelo contato com os não indígenas ao longo do século XX. 

Uma pesquisa realizada em 2001 com mulheres Dâw mais idosas apontou que, entre as crianças nascidas nas décadas de 1960 e 1980, cerca de 80% faleceram antes de completar 15 anos por decorrência de doenças e má alimentação. 

Dâw faz parte da família linguística Naduhupy, que também inclui os povos Yuhupdëh, Hupd’äh e Nadëb. A palavra dâw significa “gente” e, especificamente, “gente do nosso grupo” na língua Dâw. Próximo da comunidade Waruá, fica o rio Curicuriari. O rio é de grande importância para os Dâw contemporâneos, sua relevância é histórica e simbólica, local permeado de sentidos que inspiram um certo cuidado, histórias que carregam peso afetivo, uma vez que foi nesse território em que transcorreram processos intensamente traumáticos para os Dâw. Nas suas narrativas, como da Auxiliadora, o Curicuriari é marcado como um lugar de sofrimento e de grandes perdas das mais diversas ordens, às voltas com processos vividos no tempo em que os Dâw eram explorados na extração da piaçava e de cipó. 

Essa relação histórica e simbólica de resistência motivou a construção de um centro de valorização cultural Dâw no Curicuriari, inaugurado em março de 2021.  Período em que o povo mais demonstrou a importância do uso da sua medicina tradicional para enfrentar a Covid-19 que afetou a população. 

Atualmente, o povo Dâw vive na comunidade Waruá, próxima ao centro urbano do município de São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste do Amazonas. A comunidade fica em frente à principal orla da cidade, banhada pelo Rio Negro. Somam-se mais de 174 pessoas distribuídas em 30 famílias. A escola funciona com ensino fundamental e médio. Ao todo são 76 alunos, sendo que cerca de 30 são crianças e pré-adolescentes de até 12 anos. E ainda, a comunidade conta com 15 crianças da primeira infância.  Após décadas de lutas, hoje a comunidade possui um centro comunitário, uma escola e um posto de saúde. 

O quadro de professores que trabalha na escola é formado majoritariamente por professores de outras etnias como Tukano, Wanano e Baré. Auxiliadora era a única professora do povo Dâw e felizmente agora a Secretaria Municipal de Educação contratou Pedro Moraes, jovem da comunidade, para lecionar a língua Dâw na escola. Professora Cidinha Baré vê com preocupação e necessidade da contribuição dela na formação escolar das crianças do Povo Dâw. “Cada dia quando começo minhas aulas na escola e falo português com essas crianças eu sinto que estou ajudando a acabar com a língua deles. Mas, estamos apoiando e incentivando os jovens a se tornarem professores futuramente professores da escola”, disse Cidinha. 

Sobre formação de professores, o povo Dâw está lutando para conseguir cursos de formação específica tanto no nível de magistério indígena, quanto no nível superior através de uma licenciatura indígena específica. Esse esforço mobilizou a ida do Reitor da Universidade Federal do Amazonas até a comunidade para ouvir e receber as demandas do povo no mês de agosto passado.

No dia 31 de agosto, como comunicador da Rede Wayuri tive a oportunidade de ir até o Waruá conhecer um pouco mais a comunidade, conversar com os professores que fazem parte do quadro e principalmente ouvir as histórias de luta e de vida da professora Auxiliadora, que também é coordenadora da escola e uma das lideranças do povo Dâw. 

Na ocasião, professores e alunos estavam se preparando para as comemorações do dia 7 de setembro, uma data bastante comemorada como dia da Pátria pelas comunidades indígenas do rio Negro. Os preparativos se destinavam a fazer ensaios de brincadeiras e jogos. Muitas crianças Dâw estavam ali participando das atividades, rindo e brincando. E depois seguiram ao porto da comunidade para mergulhar e brincar nas águas do Rio Negro. Essas são atividades cotidianas e simples, mas que só são possíveis porque atualmente o povo Dâw vive em território demarcado e, por isso, sofrem menos pressões. Em São Gabriel da Cachoeira (AM) – conhecido por ser o município do país com maior concentração de população indígena – a maior parte do território é demarcado. Na região convivem povos de 23 etnias, com uma população de aproximadamente 45 mil pessoas.   

Contato delicado

Ainda assim, a comunidade Dâw enfrenta vários problemas, entre eles os relacionados à saúde, como alto índice de casos de malária, e problemas sociais causados pelo contato próximo ou direto com a cidade, como, por exemplo, registro de suicídios. Para enfrentar essas questões, são necessárias políticas públicas adequadas à realidade do povo e do seu território. 

Problemas esses que Auxiliadora e outras lideranças da comunidade têm levado aos espaços de debates públicos buscando ações com os órgãos competentes para minimizar ou solucioná-los. “Levo a voz e as demandas do meu povo para os espaços de discussões, pois queremos melhorias para a nossa comunidade e nosso povo”, afirma. 

Nem sempre essas lideranças são ouvidas, mas estão sendo criados espaços de discussão, inclusive para atender as demandas das crianças e adolescentes. 

Em junho deste ano foi realizado o I Fórum Comunitário de São Gabriel da Cachoeira – Rumo à Certificação do Selo Unicef, que propõe a construção do Plano de Ação Municipal pelos Direitos de Crianças e Adolescentes do Selo Unicef 2021-2024. As pautas do encontro foram empoderamento de meninas e igualdade de gênero, saúde sexual e reprodutiva, enfrentamento ao racismo e mudanças climáticas. 

Perguntas importantes foram levantadas para mediar os debates e os trabalhos, sendo uma delas: “Como melhorar as políticas públicas para crianças, adolescentes e jovens indígenas, reforçando o direito à consulta e à participação?”

Uma comissão intersetorial da Prefeitura e Unicef, com a participação da sociedade civil, vai atuar no município para buscar a melhoria dos direitos de crianças, adolescentes e jovens em áreas como saúde, educação e participação nos espaços de decisão. A certificação do Selo Unicef para garantia de direitos a crianças e adolescentes está prevista para acontecer em 2024.

Articuladora do selo Unicef em São Gabriel da Cachoeira, Ednéia Teles, falou da importância desses espaços de construção de políticas públicas para crianças e adolescentes no município. “Tivemos a oportunidade de ouvir os jovens sobre os problemas que enfrentam e as propostas de soluções que eles querem que o município realize para e junto com eles. Através dos planos elaborados, como gestores, vão buscar meios para promover essas políticas”, afirmou Ednéia.

Mas, afinal, quem deve ser a voz dessas crianças nesses espaços? “Como mãe, professora e liderança do meu povo, é meu dever levar para esses espaços os problemas que enfrentamos na nossa comunidade. E o município promover esses espaços de construção é importante para nós”, disse Auxiliadora. 

Professora Auxiliadora Fernandes e seus alunos na comunidade Waruá. Foto – Ray Baniwa/Rede Wayuri

Direitos, territórios indígenas e eleições 2022

Quando fui ao Waruá, já era possível ver cartazes de candidatos, mesmo ainda faltando cerca de um mês para a eleição. Como liderança indígena, Auxiliadora manifestou preocupação com a atual conjuntura da política indigenista no Brasil. Não que fossem novidades as ameaças, as invasões aos territórios indígenas, mas, nos últimos anos, projetos de governo estimularam invasões e ataques constantes aos direitos conquistados pelos povos indígenas. Causando mortes e o aumento de violência em territórios tradicionais em várias partes do Brasil. 

Uma das principais lutas dos povos indígenas no Brasil hoje é eleger representantes indígenas nas casas legislativas dos Estados e no Congresso Nacional no dia 2 de outubro. Na eleição de 2018 apenas uma Deputada Federal indígena, Joênia Wapichana (Rede/RR), foi eleita. Joênia representa e encabeça uma luta fundamental contra os retrocessos, assegurando os direitos conquistados pelos povos indígenas. 

Levantamento realizado pela Amazônia Real – agência de jornalismo independente, aponta que os três principais candidatos ao governo do estado – Wilson Lima (União Brasil), Amazonino Mendes (Cidadania) e Eduardo Braga (MDB) – , com possibilidade de vencer a eleição de 2022, tem como suas principais propostas de governo para geração de renda atividades exploratórias dos recursos da natureza com alto grau de impacto na população e na biodiversidade, como mineração, agronegócio, exploração madeireira e construção de rodovias.

Diante desse cenário político incerto e desfavorável, caberá às lideranças como Auxiliadora e organizações representativas indígenas do Rio Negro continuarem lutando pelo território e pelo futuro das crianças Dâw como vêm fazendo em mais de três décadas. 

Esse conteúdo foi realizado pelo Ray Baniwa – comunicador da Rede Wayuri. A Rede Wayuri é uma das selecionadas pela bolsa de reportagens “Eleições e primeira infância” do Nós, mulheres da periferia, apoiada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal

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